segunda-feira, 18 de junho de 2012


Que raio de professora sou eu?

Fanny Abramovich


Vira e mexe reprisam, na TV, um filme muito bonito e sensível.O Conrak, com o John Voight no papel principal.

É a história de um professor. Que vai trabalhar com as crianças mais carentes, mais assustadas, mais analfabetas, mais medrosas de que já se ouviu falar... E isso, em pleno Estados Unidos, nos anos 70. Num estado do sul. Espantosa a pobreza e a ignorância. Das crianças, das famílias, da diretora da escola.

O trabalho que o Conrak faz é comovente. Vai com tudo. De um modo sensível, paciente, humorado. Brinca, leva as crianças pra praia e pro mato, ensina em cima das árvores, corre e salta, inventa canções e ritmos, fala sobre qualquer assunto. Vai na das crianças. Com elas. Por elas. Começa e recomeça. Um montão de vezes... Atento, atento. Ao novo, ao desconhecido, aos preconceitos, à discriminação.

Ele é dedicado, mas é despedido. Mandado embora porque não corresponde aos interesses dos brancos-classe-média-que- mandam-nas-inspetorias-de-ensino-dos-mundinhos-medíocres... O que fica, do que fez, no coração e na mente, nos olhos e ouvidos das crianças é o fundamental. Entenderam. Valeu pra elas. Arrepiantemente bonito!

Choro sempre que vejo este filme. Choro mansinho. De emoção, não de desespero. Me comove.

Hoje foi diferente. Senti saudades de um tempo em que acreditava que valia a pena me jogar num trabalho. Por inteira, Agora, ando acomodada. Medrosa. Em vez de ir pra frente, sinto que you pra trás... E qual é o sentido de querer ensinar, de querer abrir cabeças, se a minha está fechada? Seguindo só o certo e o conhecido... Fico com inveja do Conrak destemido e despedido. Pra ele, valeu. Pros seus alunos também. E para os meus? Será que valerá? Duvido... É bom quando consigo me questionar. Ir mais fundo. Mesmo sabendo que ando inútil, me sinto viva.

(...)

Fui chamada pela coordenadora. Intimação urgente. Corri para a sua sala. Mal me cumprimentou. Formal, rígida, dura. Perguntou sobre minhas aulas. No melhor estilo de uma arguição oral. Me senti como uma aluna sendo examinada. Tremendo nas bases. Perguntou sobre a verificação dos questionários e exercícios. Respondi que trabalho com perguntas abertas. Nada de apontar o "verdadeiro" e o "falso".

Fechou a cara. Quis saber como avalio o uso dos conceitos. Disse que tinha minhas dúvidas sobre a correção de certos conceitos. Olhou a sua ficha. Devagar. Fui ficando nervosa. Ela testando a minha resistência. Olhei. Desviou o olhar. Fiquei sem ar. A pausa continuou. Por séculos. Interminável.

Falou. Que não tinha gostado do meu relatório. Nada mesmo. Que vários pais já tinham reclamado. Dado queixas sobre minhas aulas. E mais. Tínhamos um método comum de avaliação. Pra ser seguido a respeitado. Passo a passo. Item por item.

Esbravejei. Disse que não concordava com o método imposto pela escola e que não estava gostando de sua cobrança. Que viesse ver o que acontecia com meus alunos. Com seus próprios e sábios olhos e boca. Conferisse no real. Nas salas. Podíamos discutir meus critérios quando quisesse. Mas sem prévios julgamentos apoiados em fofocas e na ignorância de pais que acham que História é uma sucessão de datas e nomes empolados.

Ficou fula. Fiquei fula. Me dispensou. Anotou coisas em sua preciosa ficha. Provavelmente horrores sobre a minha pessoa e a minha pedagogia. Saí batendo a porta. Rodando a baiana. Respirei fundo. Fui me acalmando.

Entrei na classe. 0 primeiro aluno que fez uma gracinha foi convidado a responder a uma arguição oral. Na hora. Me olhou com ódio. Respondeu tudo. Dei nota bem mais baixa do que merecia.

Saí da escola abobalhada. Comigo. Com minhas dificuldades com a autoridade: Não a aceito quando vem em cima de mim. E descarrego nos alunos. Igualzinho. De cima pra baixo. Sem pensar. Só pra me afirmar. Ela ameaçou me suspender, despedir... Eu ameacei reprovar, pôr pra recuperação. Eu fechei a cara pra ela a me defendi. Sabendo dos meus objetivos pedagógicos. 0 aluno fechou a cara pra mim e se defendeu. Sabendo a matéria. Igualzinho. Em degraus da escada. Que vergonha... Repetir comportamentos absurdos como forma de afirmação. Como vingança. Descontando num guri de doze anos. Que raio de professora eu sou???

Vou ter que pensar em tudo isso. Muito bem pensado.

Preciso aprender a me abrir pra uma discussão. Não ir jogando pedras em quem me questiona. E pior. Não pelo questionamento em si. Muito mais pelo posto do perguntador, que faz com que o veja como juiz da Santa Inquisição. E eu, como ré. Ridículo.

Poderia ter falado com a coordenadora. Nem tentei. Não expliquei nada. Só disputei no braço-de-ferro. E perdi as duas brigas. Com ela e com o aluno. Pra mim, na minha autoavaliação, estou reprovada.

(...)

Estou mexida. Mexidíssima. Numa linda!

Encontrei num barzinho uma ex-aluna. Lídia. TrabaIhei com ela um bom tempo. E faz tempo... Tanto, que já está terminando a faculdade. Quase cai de susto. Está cursando História. Aí, caí de susto mesmo.

Depois dos abraços, dos alôs, dos "lembra de fulano", "tem visto sicrano?" a "nossa, como era divertido naquele tempo", ela olhou bem nos meus olhos. Lá dentro. E disse assinzinho:

- Laura, foi você quem me ensinou a fazer uma análise de um fato e de um texto. Pra valer. Como separar o confuso, descartar o desimportante, mergulhar no fundamental, descobrir as entrelinhas. Foi básico pra mim. Foi não, é. Tem sido, até na faculdade. É assim que analiso.

Fiquei vermelha. E muda. Ela continuou:

- Laura, foi você que me ensinou a duvidar. A não acreditar em qualquer livro nem na primeira opinião. A interrogar sempre. Isto me norteia até hoje.

Fiquei roxa. E continuei muda.

- E tem mais. Se escolhi História, hoje sei que foi por sua causa. Descobri o mundo. Meu mundo. Só que não you dar aulas. Quero partir para a pesquisa. Ser historiadora. Queria muito te encontrar, pra te dizer isso tudo. Você foi muito importante pra mim. Mais do que supõe...

Dei um sorriso besta pra disfarçar a minha sem-gracice.

Conversamos mais um pouco. Algumas abobrinhas pra relaxar. Muitas fofocas pra rir. E desengasgar a baita emoção. Nos despedimos com um abraço apertado. Grande. Grato dos dois lados. Bonito!

Fui embora com o coração batendo forte. Fortíssimo!

Lídia foi minha aluna há seis, sete anos. Nem das mais brilhantes. Não das que se nota especialmente. Não daquelas em quem apostaria. Como me enganei... Nunca imaginaria que a tivesse marcado. E tanto...

Volto pra seis, sete anos atrás. O que fiz como professora que nem percebi. Ou percebi tão mal. Com aquela turma, naquela época... Algumas atitudes e escolhas minhas eram claras a seguras. Outras, embaralhadas, confusas, seguindo modas. Não saberia sintetizar tão claramente o que fiz e o que quis com eles. Lídia soube. Analisou, separou, balanceou e me devolveu. De uma maneira linda. E tão generosa. Nem sabia o que tinha dado pra eles. Agora, sei. E me sinto uma giganta. Enorme! De pura contenteza.

Momentos assim valem o sufoco, o desânimo e a frustração do dia-a-dia. Que parecem tão desgastantes quando não se percebe a amplitude do que está se fazendo. Quando se perde a noção do que é que importa. Estou de bem comigo, com a História, com a educação. Que lindeza de encontro!!!

(...)

Estou contente! Vibrando!!

Aula pra 5ª série A. Uma turma que morre de sono. Acham tudo chatíssimo. Velharias dispensáveis. Estávamos nas tentativas de independência do Brasil. Chegamos à Inconfidência Mineira. Crente que não ia dar pano pra manga. Que ia ser aquela mesmice. Paradeza bocejante. Surpresa total!! Acordaram!! Sacaram lances geniais. Relação da Inconfidência com o presente e o passado recente do nosso país. A derrama e os impostos atuais, as perseguições aos intelectuais. Puxei a corda sem parar. Foram longe e fundo. Os olhos arregalados, as caras pedindo mais... Vão ter, ora se... Continuo na próxima aula e se precisar, pego mais outra. Parece que Tiradentes tocou no nervo certo. Nada como um dentista...

Uma aula que me deu um prazer que não sentia há um tempão. Fiquei de bem com a turma. Esperançosa. Sentindo uma gostosura boa. É tão estimulante quando eles se interessam...

(...)

Fio puxa fio!

De manhã, tive uma conversa linda! Com Sandra, uma aluna. Me procurou com olhar de espanto. Querendo saber sobre as modificações diárias no seu corpo. Os seios surgindo, a cintura reta, as espinhas infernizando, partes crescendo mais do que as outras. Uma feiura que não dava pra aguentar. Falamos. Bastante. Expliquei o que pude. Continuamos o papo na saída. Indiquei uns livros para ela ler. Contei como aconteceu igualzinho comigo quando também tinha doze, treze anos. Como isso sucedia com todas as muIheres. Era sofrido, chato. Às vezes, insuportável. Parecia interminável. Um nunca acabar. Crescer e se preparar para ser mulher, demorava. Muito!

Foi um papo bom. Bonito! Calhou de ser no momento certo da minha vida, pra falar disso. Verdadeiramente. Emocionadamente! Gosto quando me procuram pra dizer das aflições íntimas, angustiantes. Me sinto bem por ser a escoIhida, por inspirar confiança.

Entrei em casa e encontrei uma carta de um ex-aluno. Contando de sua vida nova, lá nas Minas Gerais. Com saudades daqui, de coisinhas que por lá não tem não... Estava se saindo bem na nova escola, por conta do que aprendeu comigo. Impressionando. É o bambambã em História da turma. Segue os passos que caminhamos juntos. Ano passado, retrasado, achava aquilo tudo uma bobagem. Da grande. Agora, entende. E como! Diz que espera uma carta minha. Vou responder, claro...

Peguei um Campari pra comemorar. Beberiquei mansamente. Brindei às alegrias de ser professora!

Editora Scipione, 2002

4 comentários:

  1. Que bom que sou professor, amei o texto.

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    1. Acredito que todos que ama a profissão ficam "mexidissimo"

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  2. Márcia,
    Adorei seu blog, em particular este artigo.
    Interessante ver que nossas vidas se misturam na teia pedagógica e ao partilhar crescemos, nos multiplicamos e nos voltamos aos nossos questionamentos mais profundos.
    Um abraço.
    Sucesso... e visite meu blog.
    Beijos
    Janice

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